As bem-aventuranças quebram o círculo do ódio
“Bem-aventurados, sereis, quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome, por causa do Filho do Homem” (Lc 6,22).
Estamos vivendo uma nova e preocupante situação nas relações entre as pessoas, entre as diferentes denominações religiosas, entre as diferentes ideologias políticas. Há uma aliança entre a extrema direita ultra-neoliberal, homófoga, sexista, racista, xenófoba, machista, moralista, anti-ecológica, negacionista da ciência e da mudança climática... e as organizações “cristãs” conservadoras de caráter fundamentalista. Situação que se manifesta como a mais grosseira manipulação do cristianismo e a perversão do sagrado, pois se apoia nos discursos e nas práticas de ódio dos partidos e dos grupos neo-fascistas de todo o mundo.
Tal perversão religiosa se alimenta do ódio, cria divisões, espalha mentiras e difamações, fomenta a violên-cia entre seus seguidores...; tudo isso tem um forte impacto negativo, pois se espalha muito rápido em toda a sociedade, usando, sobretudo as plataformas de mídia e redes de internet.
Revela-se aqui a face mais triste do processo de profunda desumanização que vivemos.
Muitos analistas do atual contexto afirmam que está nascendo uma “nova religião”, talvez a mais perversa, a mais destruidora do planeta e da humanidade: “a religião do ódio”.
Parafraseando o filósofo Descarte, muitas pessoas afirmam tranquilamente: “Eu odeio, logo eu sou”; ou “eu odeio, logo existo”. O ódio passa a ser a auto-afirmação e a auto-constituição por meio da negação e da aniquilação do outro, sobretudo do outro que sente, pensa e ama de maneira diferente.
Em outras palavras, através do ódio aos outros, da eliminação das pessoas e dos coletivos odiados (negros, indígenas, homoafetivos, imigrantes...), aquele que odeia confirma sua própria existência através deste argumento de morte: o outro não existe, logo eu existo como o único que resta. Além disso, a aniquilação do outro através do ódio produz prazer. Por exemplo, o torturador desfruta de prazer na hora de torturar. “Ódio e prazer acabam sendo uma só coisa” (Anders). Quanto mais se espalha e mais vezes se repete o ato da aniquilação, mais tende a se espalhar o prazer do ódio e o prazer de ser a si mesmo.
O ódio não surge do nada: tem um contexto histórico-cultural-religioso-político específico. Existem causas, motivos, razões que se apresentam como oportunidades para ativar a faísca da explosão do ódio e da intolerância. São práticas e convicções friamente calculadas, largamente cultivadas e transmitidas pelas redes sociais, alimentadas por foros de debate, publicações, meios de comunicação, discursos...
Mas, no fundo, tudo tem sua origem no coração do ser humano, pois este é capaz do “pior” e do “melhor”; ele carrega em seu interior tanto as “bem-aventuranças” como as “mal-aventuranças”.
Quando o ser humano mata sua sensibilidade e seu espírito de compaixão, quando atrofia sua capacidade de discernimento, quando não reconhece no outro seus valores, suas qualidades, sua cultura..., temos aí o cultivo do “caldo venenoso” do fanatismo que alimenta a cultura da morte.
Tal modo de proceder implica uma nítida contradição com os princípios próprios do cristianismo, centrados no perdão, no amor ao próximo, no espírito das bem-aventuranças. É uma tremenda incoerência afirmar ser seguidor(a) de Jesus e deixar-se dominar pelo instinto da vingança (“olho por olho e dente por dente”), pelo prazer em disseminar mentiras e expressar ódio, por emitir julgamentos preconceituosos e intolerantes, etc.
É em meio a este mundo marcado pela exclusão, violência, fanatismo... que devemos abrir nossos ouvidos para escutar a proclamação das “bem-aventuranças”, feita por Jesus. Elas não são leis que se impõem a partir de fora, mas dinamismos de vida que já estão presentes no mais profundo do ser humano. Elas mani-festam aquilo que é mais divino e humano no interior de cada um. Pulsa em todos nós um desejo latente de felicidade descentrada, de relações sadias, de convivência harmoniosa, de sensibilidade solidária...
É preciso favorecer ambientes humanizadores para que as bem-aventuranças aflorem com toda intensidade.
Qualquer tentativa de aclarar racionalmente o sentido das bem-aventuranças está fadada ao fracasso. Sem uma experiência profunda do humano, as bem-aventuranças são um sarcasmo. Só a partir do mais profundo sentido espiritual elas podem ser compreendidas e assumidas como um modo humano de viver.
É o texto mais comentado de todo o evangelho, mas é também o mais difícil. Inverte radicalmente nossa escala de valores. Pode ser feliz o pobre, o que chora, o que passa fome, o oprimido?
Proclama-se ditoso o pobre, não a pobreza; ditoso, não por ser pobre, mas porque ele não é causa de que outro sofra. Ditoso porque, apesar de tudo, ele pode destravar(expandir) sua humanidade. As bem-aventu-ranças não são um sim de Deus à pobreza, nem ao sofrimento, mas um rotundo não de Deus às situações de injustiça. Sempre que agimos a partir do egoísmo, há injustiça. Sempre que impedimos que o outro cresça, há injustiça.
O evangelho não incentiva valorizar a pobreza em si mesma, mas instiga-nos a não ser causa do sofrimento do outro. A pobreza evangélica sempre faz referência ao outro.
Assim, ditoso o pobre, não por ser pobre, mas por não causar pobreza; ditoso o que chora, não porque é sensível, mas por não causar dor aos outros, fazendo-os chorar; ditoso o que passa fome, não porque não tenha nada que comer, mas porque vive a espírito de partilha e não suporta vendo os outros com fome; ditoso aquele que é odiado e sofre perseguição, não por ser incompreendido, mas por sua atitude profética em favor dos injustiçados e excluídos. Esta é a profunda mensagem das bem-aventuranças.
Ser ditoso é ser libre de toda atadura que nos impede expandir nossa humanidade.
Ao proclamar as bem-aventuranças, Jesus está revelando que seu Pai e nosso Pai não é o Deus que vem complicar nossa vida com cobranças, ritos, penitências, mortificações, leis que alimentam culpa... O Deus de Jesus é o “Deus da felicidade” e Ele quer que todos os seus filhos e filhas vivam intensamente a felicidade. Felicidade como integração interior, harmonia nas relações com os outros, sintonia com a criação e abertura filial a Deus.
Em grego, felicidade é “eudaimonia”. A ideia de “eudaimonia” é a de alguém que é impulsionado de dentro para fora. No latim, a expressão correspondente é “felicitas,atis”. Fertilidade e felicidade têm raízes comuns. Somos felizes quando somos fecundos. Não devemos nos afastar da noção de felicidade como fertilidade. O fértil é aquele que mantém a vida. É a marca da bio-proteção, da capacidade de gerar e defender a vida. Sem a possibilidade da felicidade, sem a proteção vital, sem o arremessar para adiante, a gente não se move (em hebraico, felicidade é “mahala”: andar para a frente). A felicidade é um sentimento descentrado, pois perfuma e transforma o ambiente, carregado de tristeza e morte.
É preciso recordar que ser feliz não é ter um céu sem tempestades, caminho sem acidentes, trabalhos sem cansaço, relações sem decepções...
Ser feliz é encontrar força no perdão, esperanças nos desafios, segurança no palco do medo, amor nos desencontros. Ser feliz não é apenas comemorar o sucesso, mas aprender lições nos fracassos. Não é apenas ter alegria com os aplausos, mas ter alegria no anonimato.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver a vida, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz não é uma conquista, mas uma atitude de quem sabe viajar para dentro de seu próprio ser e mobilizar seus recursos oblativos. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e tornar-se ator da própria história.
Texto bíblico: Lc 6,17.20-26
Na oração: Repassar, sentindo e saboreando, o significado de cada uma das bem-aventuranças, deixando-as ressoar no coração e dei-xando que o próprio coração revele sua fome e sede de ser bem-aventurado.
- Diante da cultura do ódio que impera em nossa sociedade, como você rea-ge? Você é canal de transmissão de mentiras, julgamentos, preconceitos... ou presença humanizadora, expandindo seus recursos bem-aventurados?
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ
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